Crítica: Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une chute/Anatomy of a Fall) | 2023

O grande vencedor da Palma de Ouro em Cannes deste ano, Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une chute/Anatomy of a Fall, FRA, 2023, 150 min), é uma tensa e traiçoeira teia de intrigas pronta para aprisionar seu espectador. Quando Samuel Maleski (Samuel Theis) é encontrado morto embaixo de seu chalé na França, sua esposa, Sandra (Sandra Hüller, de As Faces de Toni Erdmann) surge como a principal suspeita, apesar de seus protestos de que a morte foi acidental ou que se trata de um suicídio. A única testemunha é seu filho cego, Daniel (Milo Machado Graner), que precisa lidar com a dúvida se sua mãe é culpada ou não, enquanto ela enfrenta um difícil julgamento por assassinato.

Dirigido e co-escrito por Justine Triet (Sibyl, 2019), o drama explora a ambiguidade de nossas vidas, a estranha linha entre a realidade e a ficção, e o peso emocional de não se saber toda a verdade. À medida em que o filme nos leva da morte de Samuel até a investigação e enfim ao longo julgamento um ano depois, o longa pede ao espectador que faça o papel de juiz e juri. Da mesma forma que Daniel precisa decidir em que ele acredita, nós também precisamos. Como o filme diz, é impossível viver com a incerteza, então é preciso se decidir. Até porque Triet se recusa a fazer isso por nós.

Sandra Hüller em ANATOMIA DE UMA QUEDA (ANATOMY OF A FALL/ANATOMIE D’UNE CHUTE) | 2023

Com a premissa Hitchcockiana do filme e nossa sólida dieta contemporânea de séries e thrillers de suspense como Garota Exemplar, A Garota no Trem, entre outros, é fácil esperar um final surpresa ou a famosa reviravolta, mas Triet está mais interessada em deixar o público no vazio. É uma escolha poderosa e um tanto frustrante, mas comum aos thrillers europeus, que não se importam tanto em satisfazer seus espectadores como o cinema de suspense americano. A câmera da cineasta oferece uma ambiguidade similar, que se reflete na maneira com que ela captura o julgamento, às vezes focando no promotor ou na equipe da defesa, outras vezes naqueles que estão apenas observando. Trata-se de uma visão realmente única dentro do gênero, que coloca o espectador dentro do tribunal, mas que nunca nos encoraja a tomar partido.

Hüller é a âncora do filme, com certeza a grande estrela do Festival de Cannes deste ano, com créditos neste Anatomia de um Crime e também no excelente A Zona de Interesse, do diretor Jonathan Glazer. No papel de Sandra Voyter, uma escritora de sucesso conhecida por interpolar sua própria vida em seu trabalho, ela está enigmática e empática ao mesmo tempo. Existe uma dureza nela, o suficiente para que nós nunca consigamos realmente acreditar em sua veemente insistência ou em sua inocência. Sua face é um enigma, mesmo quando ela enfrenta difíceis interrogatórios ou quando desmorona ao saber da desconfiança de seu filho com relação a ela.

Sua performance é rivalizada pela de Milo Graner no papel de Daniel, um jovem ator que exala maturidade e uma inocência de partir o coração, sempre de maneira incrivelmente natural. Ele serve como o avatar do espectador, que tem de observar apenas o que é apresentado a ele, para enfim tomar uma decisão. A complicação em torno de sua cegueira eleva tanto sua performance quanto o que está em jogo no drama.

A realidade, no fim das contas, é apenas aquilo que percebemos em nossas próprias vidas. Gostemos disso ou não, uma grande parte de como interpretamos o mundo objetivo ao nosso redor não é apenas pessoal, mas também subjetiva. Anatomia de uma Queda brinca com esta desconfortável verdade, utilizando breves inserções do relacionamento entre Sandra e Samuel como forma de discorrer sobre os fatores que podem ter contribuído para a trágica morte dele.

Triet também flerta com os papéis de gênero, fazendo da raiz das fraturas no casamento entre Sandra e Samuel, algo diferente do que poderíamos esperar. Samuel sente que está sobrecarregado com o excesso de responsabilidades do lar, forçado a se sacrificar pela carreira de Sandra. Ela, por sua vez, é indescupavelmente sexual, procurando satisfação fora de seu casamento quando necessário. Todos estes elementos não seriam necessariamente um motivo para suspeita se fosse o marido, e não a esposa, no banco dos réus. Triet empresta a Sandra tais características mais masculinas para complicar o interrogatório sobre percepção, preconceito, e culpa proposto pelo filme.

Existe também uma ênfase metalinguística na voz e intento autorais, uma vez que os livros de Sandra são agregados ao julgamento. Como ela pontua de maneira esperta em um dado momento, “Um livro não é a vida e um autor não é seu personagem.” Mas filmes (e livros) são feitos para refletir nossas vidas de volta para nós, para segurar um espelho e nos dar uma maneira de interagrir com os assuntos mais espinhosos de nossa existência através de uma narrativa. Com seu Anatomia de uma Queda, Triet está ao mesmo tempo nos convidando a fazer isso, e nos alertando para não colocar muito de nós nas histórias que lemos e contamos a nós mesmos. Será?

Avaliação: 3.5 de 5.

Anatomia de uma Queda ainda não tem previsão de estreia em território brasileiro, mas deve ganhar uma data oficial em breve.

O Trailer Oficial de ANATOMIA DE UMA QUEDA (ANATOMY OF A FALL/ANATOMIE D’UNE CHUTE) | 2023

4 comentários sobre “Crítica: Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une chute/Anatomy of a Fall) | 2023

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  2. Chega a ser impressionante a maturidade do garoto ao dizer certas frases incrivelmente adultas e a pureza do seu olhar que nos faz temer por ele.Se a atuação dele nao fosse tao boa, tais frases soariam vazias e forçadas, mas ele dá show e segura a onda.

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