Crítica: Foge, Coelho (Run Rabbit Run) | 2023

Você, estimado leitor que aqui está, pode até apreciar este thriller se você nunca viu um de seus vários genéricos indiretos. Dirigido por Daina Reid à partir de um roteiro de Hannah Kent, Foge, Coelho (Run Rabbit Run, AUS, 2023, 100 min.) aproveita inúmeras referências da cartilha dos filmes de horror recentes sobre mães destruídas pelo luto e pelo trauma, que se encontram às voltas com eventos sobrenaturais que as confrontam com seus complicados relacionamentos com suas próprias mães e também com seus próprios filhos. Eu mesmo aqui no Filmes do Kacic falei recentemente sobre um destes exemplares, o irregular From Black, mas caso vocês estejam procurando referências mais óbvias, é só dar uma olhada em Hereditário (2018) e O Babadook (2014). Porém, o roteiro deste Foge, Coelho sofre de um excesso de inconsistências de lógica, e nunca consegue estabelecer o mundo o qual quer retratar — seriam os acontecimentos em cena sobrenaturais ou meras alucinações de uma mente perturbada? Qualquer uma das possibilidades acaba sendo decepcionante.

A espetacular Sarah Snook (de quem sou fã confesso muito antes de sua atuação arrasadora como Shiv Roy na fantástica série da HBO, Succession), interpreta aqui uma médica especialista em fertilidade também chamada Sarah. Ela vive em um subúrbio no sul da Austrália como sua filha, Mia (Lily Latorre), que acabou de completar sete anos. Mas seu aniversário coincide de maneira sinistra como a morte bem recente do pai de Sarah, uma tragédia que ela ainda não digeriu. Sarah também é divorciada e vive afastada de sua mãe, Joan (Greta Scacchi), que foi recentemente diagnosticada com demência e vive em uma casa de repouso.

Lily Latorre em FOGE, COELHO (RUN RABBIT RUN) | 2023

Como acontece de costume em filmes do tipo, ameaçadores símbolos começam a surgir, mais explicitamente na forma de um coelho branco que aparece na porta de Sarah no dia do aniversário de Mia. A criança imediatamente se apaixona pelo bichinho, ao mesmo tempo em que começa a exibir sinais de um comportamento errático, agitado, que começa a fomentar em Sarah questões sobre Joan, com quem nenhuma das duas possui uma relação. Mia também começa a chamar a si mesma de “Alice”, insistindo que ela não é mais a criança que era, e aqueles que prestarem bastante atenção logo de cara irão perceber quem Alice realmente é.

Outra criatura ganha um pérfido poder alegórico, como em uma cena, onde Sarah atropela um grande pássaro, sem perceber o que fez até que Mia chama sua atenção para o acidente. Porém, ela não consegue encontrar o pássaro embaixo do carro ao procurá-lo. Tais imagens são menos clichês (e se tornam mais instrutivas depois) do que inevitavelmente se torna o motivo visual dominante dos colapsos de Sarah e Mia — que é, você adivinhou, sinistros desenhos de pessoas com olhos e membros arrancados feitos por Mia na escola. Sarah os encontra tarde da noite, enquanto toma uma grande taça de vinho e liga para seu ex e sua nova esposa, os acusando de envenenar a mente de Mia ao revelar segredos de seu passado para a menina.

Tais segredos levam a uma trepidante e esquemática decisão do roteiro na segunda metade do filme, em que Sarah inexplicavelmente arrasta Mia para sua casa de infância na área rural. Como tal decisão procura fazer sentido na trama além de tentar imputar no filme uma sensação de crescente incômodo, é apenas um dos preguiçosos desvios da narrativa que seguem inexplicados. Joan, que após uma visita de família à casa de repouso passa a chamar Mia de “Alice” também, deixou o local inacreditavelmente intacto desde a época em que Sarah era uma criança. Então, o que seria melhor do que reviver traumas do passado para, quem sabe, extinguir os novos?

Mia, em uma impressionante performance da jovem Latorre, vai gradativamente se tornando cada vez mais feroz em relação à sua mãe, dirigindo insultos a ela, a chamando de “pessoa terrível”, e colocando-a à prova de explosões que testariam o temperamento da mãe mais paciente do mundo. É neste ponto que lembranças de O Babadook surgem na mente, pois assim como no filme da também australiana Jennifer Kent, o público sente uma pungente compaixão pela protagonista e sua frequente ambivalência, uma vez que sua filha se tornou, bem, realmente insuportável.

Snook e Latorre operam de maneira similar aqui, enquanto Sarah começa a realmente surtar e colocar o espectador a se perguntar se o que ela está vendo é real ou alguma maquinação realmente sobrenatural. Vários jump scares que apresentam a figura fantasmagórica de uma garota com longos cabelos pretos e camisola, quase sempre fora de foco ao fundo, ou flashes de mãos essanguentadas ou pesadelos que culminam em algum design de som exagerado, até conseguem produzir bons sustos. Mas eles são apenas isso; sustos com pouca substância.

Há algumas imagens surpreendentes na segunda metade do filme que sugerem um longa totalmente diferente, e um que os fãs do horror gostariam de ver. Um barracão sinistro e decrépito ao redor da casa onde Sarah cresceu contém um armário trancado o qual você não gostaria de chegar perto. Dentro do barracão, suspensas no teto, estão velhas ferramentas que lembram instrumentos de tortura. Há um outro momento envolvendo Sarah e Mia e um par de tesouras onde você quase pode ouvir a onda de choque se espalhar pela sala de cinema (se houvesse uma). Seria de repente este o filme que vamos ver? Infelizmente não.

No final das contas, Foge, Coelho é um amontoado de clichês banais do horror. A diretora de fotografia Bonnie Elliott até conjura algumas arrebatadoras imagens do cenário australiano, mesmo quando utiliza imagens de drone, mas há algo sonolento sobre a empreitada toda. O que acaba salvando o programa é mesmo uma despenteada Sarah Snook, que embarca em modo full insano, onde sua personagem evoca memórias de filmes como o citado Babadook, passando por Cisne Negro e até o clássico Repulsa ao Sexo nos momentos finais. Mas estes são pontos de referência que sugerem a natureza mundana da produção, e sua falta de elementos originais. Foge, Coelho é o tipo de thriller que vai fazer sucesso em sua primeira semana na Netflix, para depois ser esquecido para sempre.

Avaliação: 2 de 5.

Foge, Coelho estará disponível no catálogo da Netflix à partir do dia 28 de junho.

O Trailer Oficial de FOGE, COELHO (RUN RABBIT RUN) | 2023

2 comentários sobre “Crítica: Foge, Coelho (Run Rabbit Run) | 2023

Deixe um comentário