Crítica: Black Mirror | S04E03 – Crocodile (Crocodilo) | 2017

Ao longo do caminho, Black Mirror deixou de ser uma série sobre constante devastação e passou a contar algumas histórias sobre amor (San Junipero), e até sobre a busca por aceitação social (Nosedive), entre outros temas nem tão periclitantes assim. Mas neste terceiro episódio da quarta temporada da série, Crocodile (Crocodilo), o velho Charlie Brooker do antigo testamento está de volta, para socar o estômago do espectador e torcer a faca na ferida.

Sem dúvida um dos episódios mais sombrios de toda a antologia Black Mirror, Crocodile é centrado em torno de um dispositivo que permite ao usuário acessar as memórias de outras pessoas. Ainda que à princípio a história pareça girar em torno de um pequeno caminhão que atropela um pedestre, o atropelamento na verdade é apenas a ponta do iceberg deste conto, que foi filmado na Islândia e dirigido pelo sempre competente John Hillcoat (A Estrada, Os Infratores). Crocodile discorre sobre o que poderia acontecer se nossas memórias fossem acessíveis a terceiros, e sobre o quão longe alguém está disposto a ir para manter sua mente como algo particular.

Andrea Riseborough em Black Mirror | S04E03 – Crocodile (Crocodilo) | 2017

[ALGUNS SPOILERS A SEGUIR]…

O episódio tem início com um jovem casal formado por Mia (a excepcional Andrea Riseborough, de Here Before), e Rob (Andrew Gower), enquanto a dupla retorna de uma rave em uma viagem de carro por uma estrada isolada nas montanhas. Enquanto cantam e riem (ainda chapados), Rob atropela um ciclista, que morre instantaneamente. Mia tem o impulso de chamar a polícia, mas Rob – consciente de que possui álcool e drogas no organismo – a convence a dar fim no corpo e na bicicleta do homem, despejando-os em um lago. Tudo isso acontece antes dos créditos iniciais, então já dá para ter uma ideia que o que vem a seguir vai ser pesado.

Quinze anos se passam, e Mia agora possui um marido, um filho e uma carreira de sucesso como arquiteta (além de um corte de cabelo modernoso). Um dia, ela parte para uma conferência na qual ela será a oradora, e para sua surpresa, Rob, seu antigo namorado (e parceiro de crime) aparece no hotel em que ela está hospedada. Rob, ao contrário de Mia, não está nada bem. Tentando se recuperar do alcoolismo, ele diz para Mia que suas reuniões do AA o ensinaram a se desculpar com todos aqueles a quem ele possa ter magoado ao longo da vida – o que para ele (e infelizmente para Mia), envolve a família do homem que ele atropelou quinze anos atrás.

Ele diz para a ex que pretende escrever uma carta anônima para a família, explicando o que aconteceu, mas Mia – ciente de tudo o que ela agora tem a perder – insiste que a carta levaria a polícia até eles. Rob tenta partir, mas Mia o impede. E após um agarra-agarra, Mia consegue sufocar o ex-namorado, eventualmente o matando. Tentando acobertar o que fez, ela decide dar fim no corpo, elaborando uma fuga temporária do hotel e descartando o cadáver do ex-namorado em uma das construções que levam seu nome. Agora, já são duas mortes nas costas de Mia em vinte minutos de episódio, só que a carnificina não para por aí; pois em um dado momento em seu quarto de hotel, Mia dá uma espiada pela janela, e vê um homem ser atropelado.

Entra em cena Shazia (Kirin Sonia Sawar), uma dedicada funcionária de uma seguradora que está investigando o atropelamento do qual Mia foi testemunha involuntária. Shazia carrega um antiquado monitor ao estilo anos 80 para lá e para cá, sugestivamente chamado de ‘Recaller‘, que lhe dá acesso às “impressões cruas dos eventos” guardadas na memória das eventuais testemunhas. Ao conectar as mentes destas pessoas que viram o acidente em questão – o que pode não refletir exatamente o que aconteceu devido à emoção ou stress – Shazia é capaz de remontar o quadro geral e chegar à conclusão se cabe ou não um processo por parte da vítima.

Após entrevistar diversas pessoas, os rastros da investigação eventualmente levam Shazia até Mia. E quando ela conecta uma reticente Mia ao retrocomputador, o que se segue é seguramente a sequência de eventos mais cabulosa de toda a antologia Black Mirror, que rivaliza com aquela chocante e perversa conclusão do sensacional episódio Shut Up and Dance, na terceira temporada. Sem adentrar ainda mais no território dos spoilers, o que dá para dizer é que Crocodile é implacavelmente brutal em sua descrição da violência, onde nem sequer uma espécie de reviravolta catártica é capaz de amenizar o impacto final do episódio. Pode-se dizer que Crocodile é puro suco de Black Mirror, bem aí. Não há arestas a serem aparadas, e cada reviravolta brutal choca genuinamente o espectador.

Os melhores episódios de Black Mirror são aqueles que simplesmente utilizam a tecnologia como um elemento do plot, como um meio de mostrar do que os humanos são capazes de fazer contra os outros e contra si mesmos. O texto de Charlie Brooker é pura genialidade perversa aqui, e o estonteante cenário islandês ajuda no resultado final de diferentes maneiras. Sem falar na interpretação animalesca da fenomenal Andrea Riseborough, cuja descida fora de controle mantém o espectador grudado no sofá, em terror absoluto. Crocodile é facilmente um dos melhores episódios de toda a antologia Black Mirror, ainda que não seja indicado para os fracos de estômago.

Avaliação: 4.5 de 5.

Crocodile está disponível na Netflix.

O Trailer Oficial de Black Mirror | S04E03 – Crocodile (Crocodilo) | 2017

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