Crítica: Hukkle (2002)

O público de hoje em dia frequentemente se esquece que os filmes começaram em silêncio. Nos 80 anos desde que a mídia se tornou sonora, é raro que um cineasta trabalhe apenas com imagens. O primeiro filme do diretor húngaro György Pálfi (Taxidermia, Queda Livre), este Hukkle (HUN, 2002, 78 min.) não trabalha com diálogos. Entretanto, como Pálfi aponta nos comentários do DVD do filme, não se trata exatamente de um filme mudo. Os personagens até falam, fora do campo de visão, e nós escutamos sons, os ritmos da vida cotidiana. De acordo com Pálfi, contudo, o filme foca em cenas que ocorrem depois que os personagens terminaram suas discussões.

Hukkle (o título é uma brincadeira onomatopéica com os soluços constantes de um dos personagens) se tornou um dos poucos filmes húngaros a obter distribuição internacional na época de seu lançamento. Ao assistir a esta incrível estreia de Pálfi na direção, logo fica claro o porquê. Cativante e provocador, Hukkle é o equivalente cinematográfico de um quebra-cabeças embalado em enigmas étnicos e charadas rurais. Estes elementos complicam uma história simples sobre morte e trapaça. Seu estilo — parte documentário, parte thriller — experimenta com o dicionário do cinema, explorando novas maneiras de contar uma história.

HUKKLE (2002) – Dir. György Pálfi

A trama, que deve ser montada através de espiadas, tracking shots e close-ups, parece ser centrada no conhecimento de uma pequena senhora no que diz respeito a venenos. Ao vender as garrafinhas de destruição para os habitantes de um pequeno vilarejo eslavo, ela é praticamente um negócio de morte. Seus clientes “batizam” a comida de seus maridos e esposas com o conteúdo das garrafinhas e, de repente, a população do cemitério local cresce vertiginosamente.

Tal premissa pode soar como algo comicamente sombrio, mas Hukkle é muito mais do que isso. Trata-se de um filme noir naturalista, uma versão adulta de um conto de fadas dos irmãos Grimm. O velho soluçante (que praticamente dá nome ao filme) é definitivamente um brincalhão, uma espécie de bobo da corte em meio a todos os sinistros acontecimentos que ocorrem ao seu redor, mas as imagens de cadáveres repousando embaixo d’água, ou motoristas de caminhão espiando as mulheres do vilarejo com má intenção, acabam misturando as coisas. Para cada momento engraçado ou descontraído (um poicial que faz xixi o tempo todo ou o close-up extremo dos testículos de um porco), existe um contra-conceito, seja ele provocativo (o encontro inusitado entre dois amantes) ou doloroso (o sofrimento de um animal pouco antes de sua morte).

Ao justapor o agradável com o profano, o filme discute a circularidade entrelaçante da vida. Em Hukkle, cada indivíduo e evento está interligado um ao outro. O policial local investigando as mortes é filho do criador de abelhas do vilarejo. Os insetos do pai polinizam as fazendas nos arredores. Estes campos contém tanto o trigo que cada família usa em suas refeições, assim como as ervas que a vilã utiliza para fabricar seu veneno. Em essência, o crime é culpa de seu pai. E ao resolver o caso, o policial condena sua própria carne e seu próprio sangue.

Outras conexões são mais metafóricas. Famílias fazem suas refeições em mesas de jantar carregadas de banquetes de dar água na boca. É claro, é a mesma sustância que irá eventualmente matar o cabeça do lar. Hukkle instiga que toda comida é profana — do sofrimento dos animais que são mortos ao envenenamento das porções — e a câmera celebra a suculência visual de um ensopado ou a nojeira de uma porção de frango liquefeito, esclarecendo a correlação entre satisfação e risco. Em outra anedota, uma mulher trabalhadora chega em casa depois de trabalhar no campo, para garantir que os homens preguiçosos da casa tenham sua comida preparada no micro-ondas. Ao privá-los de sua comida caseira, ela está negando a eles seu amor, ao mesmo tempo em que está se levantando contra o chauvinismo.

Repetidamente, o filme mistura ideologias e tecnologias tradicionais e contemporâneas, onde as mulheres são mais adeptas a circular entre elas. Como Pálfi sugere durante a utilização de uma canção folclórica nos momentos finais de Hukkle, os assassinatos de seus maridos cometidos pelas esposas são uma forma de vingança: pelo adultério, pela realidade da Hungria rural, um lugar oprimido por noções medievais de gênero e status social. Cenas onde os homens bebem, jogam e flertam, contrastam com aquelas de mulheres labutando em trabalhos quase escravos, costurando em oficinas ou em casa. É como se Pálfi quisesse encontrar o idílico, apenas para expôr o mal que há por baixo.

O “idílico” aparece primeiro como um documentário, com paisagens e tomadas de pessoas cuidando de sua existência rústica. Certamente, a maior parte do material é fictícia, criada com astuta composição visual (uma marca registrada do diretor) e idéias inventivas (a súbita aparição de um jato voando baixo sobre o canal da cidade, a utilização de canções como o único “diálogo”). Pálfi também leva certos conceitos até o limite (o velho homem soluçante se torna irritante rapidamente), mas o cineasta sempre consegue evitar o desastre. De fato, Hukkle é um dos filmes mais controlados e intrincados já feitos.

Pálfi fornece o básico — atores, ação, cenários — e cabe a nós montar o quadro geral, e tornar Hukkle hilário ou angustiante. Como seu título, que não possui um sentido literal, você pode interpretar o filme da maneira que quiser. Nenhuma resposta está errada, nenhuma interpretação é a correta. Assim como a vida. Assim como a morte.

Avaliação: 3.5 de 5.

Assim como praticamente toda a filmografia do diretor György Pálfi, Hukkle é um filme difícil de ser encontrado atualmente. O mais provável é que você o encontre através de plataformas informais de download.

O Trailer Oficial de HUKKLE (2002) – Dir. György Pálfi

2 comentários sobre “Crítica: Hukkle (2002)

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