Crítica: O Pacto (Guy Ritchie’s The Covenant) | 2023

Ao longo de 25 anos de carreira, o diretor Guy Ritchie tem conduzido sua carreira capitaneando alguns inesquecíveis projetos de ação/crime como Snatch: Porcos e Diamantes, RocknRolla, até o recente Esquema de Risco: Operação Fortune, lançado neste mesmo ano e em que seus (geralmente britânicos) personagens trocam diálogos sem compromisso como atores em um jogo de improvisação. Este O Pacto (Guy Ritchie’s The Covenant, UK/ESP, 2023, 123 min.) por outro lado, é possivelmente o primeiro projeto do diretor que adentra o território oficialmente dramático, mais sério, que aparece apenas de relance em alguns exemplares de sua cinebiografia.

Trata-se de um filme sobre a Guerra do Afeganistão centrado em temas como dever e culpa, focado na dívida de um soldado americano para com seu intérprete afegão. A premissa produz uma intensidade direta que não esconde alterações de tom costumeiras no cinema de Ritchie, mas que permanece firme dentro do estilo do diretor — seu comando de câmera e seu foco em indivíduos violentos estão intactos — ao mesmo tempo em que seu filme revela-se um drama de guerra eficiente e empolgante, que nos faz perguntar por que o diretor não se arriscou mais neste tipo de cinema ao longo da carreira.

Jake Gyllenhaal em O PACTO (GUY RITCHIE’S THE COVENANT) | 2023

Ambientado em 2018 — quase duas décadas desde a ocupação americana do Afeganistão — O Pacto tem início como a maioria dos filmes de Ritchie, com um eclético grupo de companheiros com apelidos esquisitos (soldados durões como Jizzy, J.J., Jack-Jack e Chow-Chow) conversando sobre armas de fogo. Só que desta vez, a conversa dos camaradas é interrompida pela tensão letal em um checkpoint militar onde uma inspeção acaba terrivelmente mal, com a morte do tradutor local (e também de um dos membros do time).

Meses depois, o teimoso líder do esquadrão, o Sgto. John Kinley (Jake Gyllenhaal), aceita de maneira relutante um intérprete substituto, na forma do disciplinado mas igualmente teimoso Ahmed (Dar Salim). Ahmed é ligeiro em corrigir Kinley sobre a pronúncia de seu nome, ainda que isso não impeça a condenscendência de Kinley — um produto de sua abordagem natural sem tempo para conversinha. A missão do sargento é encontrar e “neutralizar” o maior número possível de instalações armadas do Taliban, não importa o obstáculo que surja no caminho. Kinley gosta das coisas do seu jeito, mas os motivos que levaram Ahmed a se candidatar para a posição e seus métodos incomuns de extrair informação, o fazem um parceiro instável para Kinley, que gosta de seguir a cartilha.

Desde seu texto de abertura, O Pacto — que Ritchie co-escreve ao lado de Ivan Atkinson e Marn Davies — posiciona sua premissa como um fracasso da política americana. O filme não apenas menciona os vários vistos americanos e asilo prometidos aos intérpretes afegãos em troca da ajuda deles (muitos dos quais permanecem no limbo até hoje), mas também sua linha do tempo, que esbarra na desastrosa retirada americana do Afeganistão em 2021 e na subsequente tomada do Taliban, o que incute ao filme uma aura fatalista tanto nas ações quanto nas missões de Kinley ao longo da trama. Cada operação individual é ambígua e reside no limite entre o conflito com as forças inimigas, e Ahmed navegando por situações periclitantes através da tradução. Como por exemplo na sequência em que ele debate com um residente local que costumava negociar com o Taliban.

Jake Gyllenhaal e Dar Salim em O PACTO (GUY RITCHIE’S THE COVENANT) | 2023

Kinley e Ahmed são homens forjados no ódio e na perda, e eles frequentemente batem de frente. No entanto, a estrutura do filme fornece apenas a Kinley uma completa exploração emocional, apesar do fato de que Ahmed passa grande parte do segundo ato em uma missão de resgate de um homem só, defendendo de maneira habilidosa um Kinley ferido em meio a diferentes cenários perigosos ao longo de vários dias (que Ritchie filma praticamente em meio ao caos). A subsequente baixa de Kinley e seu retorno para casa o deixa mergulhado na culpa, e é aí que O Pacto se transforma em um surpreendente drama que acompanha as frustradas tentativas do sargento de obter uma simples resposta pelo telefone de porquê Ahmed ainda não recebeu seu status de imigrante; desde os thrillers de uma locação só, Enterrado Vivo (2010) e Locke (2013), o cinema não transformava um telefonema em algo tão urgente. Eventualmente, Kinley decide ele próprio tomar a frente da ação e extrair Ahmed e sua família do Afeganistão, antes que o Taliban possa descobrir seu paradeiro, o que resulta em um eletrizante último ato.

O Pacto existe não somente sob a sombra das guerras americanas, mas sim sob o cinema de guerra americano como um todo. Enquanto tenta de alguma maneira tomar uma posição apolítica, suas imagens e narrativa nunca são subversivas o suficiente para evitar as complicações inerentes do gênero. Quando um filme insere a si mesmo em uma linhagem cinematográfica ainda em atividade, ele acaba absorvendo os clichês e expectativas existentes até que intencionalmente ele decida não mais fazê-lo. Por exemplo, a câmera garante nuance e individualismo apenas para aqueles em um lado do conflito; para um personagem afegão ser totalmente humano, ele deve primeiro lutar pela América. O filme pode até se posicionar dentro de um cenário de fracasso americano, mas sua história está mais preocupada com as operações bem-sucedidas (ou QUASE bem-sucedidas). O que acaba batendo de frente com o fatalismo da premissa inicial previamente mencionado. A guerra não pode ser fútil quando ela é tão frequentemente bem-sucedida.

Contudo, a abordagem do filme à história de Kinley e Ahmed é muito mais humanista do que na maioria dos filmes do gênero. Histórias sobre realistamento não são novidade no ambiente cultural americano pós-11 de setembro, mas ao invés de um soldado retornar ao Oriente-Médio seja por política (Stop-Loss: A Lei da Guerra) ou obsessão (Guerra ao Terror), a decisão de Kinley de retornar ao campo de batalha, como um civil, é extremamente altruísta. A ideologia de Kinley – no que diz respeito ao que as pessoas devem umas às outras como seres humanos — é eventualmente arrancada de qualquer coisa que remeta ao militarismo, para que o terceiro ato do filme possa efetivamente se desenrolar.

Mas onde O Pacto realmente brilha é na eletrizante intensidade de suas performances e de sua ação. O excepcional trabalho de Gyllenhaal conversa com alguns de seus filmes de guerra anteriores, como Soldado Anônimo e Entre Irmãos, especialmente quando ele retorna para casa pasa sua esposa e filhos, e acaba transformando seu lar em um ambiente tenso e insone, sempre que ele reflete sobre o conflito. No entanto, diferente das histórias sobre Síndrome de Estresse Pós-Traumático já retratadas no cinema, o que mantém Kinley acordado à noite não são os horrores físicos da guerra, mas sim os dilemas éticos, e a traição da qual ele se tornou cúmplice. As encaradas e súbitas explosões de fúria de Gyllenhaal soam assustadoramente familiares, mas ao contrário de ser assombrado por suas ações, ele é assombrado pelo que não fez. As cicatrizes emocionais que ele carrega não são realmente sobre si mesmo. Por um período, O Pacto praticamente representa a morte do ego do drama de guerra americano, apesar de sua propensão de enfeitar o papel da América na guerra.

O sucesso do filme é também devido pela humanidade e inteligência silenciosa que Salim traz para seu Ahmed. Ritchie evoca a fúria purulenta que o ator iraquiano trouxe para seu thriller de vingança dinamarquês Guerreiro da Escuridão (2017), e mesmo que os detalhes em torno de Ahmed sejam reduzidos a meras menções, trata-se de um personagem de alta pressão que informa uma abordagem calculada ao conflito, mesmo quando Ahmed surta. O papel, ainda que infelizmente bidimensional no texto, ganha vida através das controladas demolições de si mesmo perpretadas por Salim, e suas controladas eviscerações das forças inimigas em momentos que demandam angústia tanto física quanto emocional. Tais cenas são as que mais parecem emprestadas dos filmes de gângster dirigidos por Ritchie. A ação, na maioria das vezes, é brutal.

Ritchie, de maneira habilidosa, enriquece o que nas mãos de outro diretor poderia ser apenas mais um filme de ação padrão. Apropriadamente, Ahmed esclarece diversas vezes que ele não é um tradutor, mas sim um intérprete — não alguém que captura o literal, mas que transmite o significado essencial. O Pacto praticamente incorpora esta abordagem da guerra através de seu movimento, com a câmera internalizando e externalizando quase que violentamente, em momentos de auto-reflexão ou intenso isolamento, destilando o conflito maior em algo íntimo. Nas cenas de ação, o som sempre passa zunindo, como se a carnificina fosse algo muito rápido para nossos ouvidos ou cérebro processarem.

Já são aproximadamente vinte anos do cinema moderno de guerra sobre o Oriente Médio em Hollywood, e tem se tornado cada vez mais difícil justificar as contínuas falhas como a redução de povoados inteiros puramente sob o contexto de seus invasores e suas alianças. No entanto, esta nova adição ao gênero dirigida por Ritchie insere energia e estilo de maneiras que não se via no cinema de guerra há pelo menos uma década. Trata-se de um exímio exercício de tensão e humanismo de um diretor completamente no domínio de seu ofício.

Avaliação: 4 de 5.

O Pacto será adicionado ao catálogo do Prime Video a partir do dia 22 de junho.

O Trailer Oficial de O PACTO (GUY RITCHIE’S THE COVENANT) | 2023

3 comentários sobre “Crítica: O Pacto (Guy Ritchie’s The Covenant) | 2023

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