Crítica: Something in the Dirt (2022)

Já se passaram alguns meses desde minha última crítica aqui no blog. Um problema de saúde e meu desânimo com a indústria cinematográfica atual acabaram me colocando em um hiato, o que, curiosamente, não foi de todo ruim. Foi um período em que pude observar melhor o cinema “de fora”, sem tanto compromisso com o que viria a escrever ou não. Tanto que esta minha nova crítica não necessarimente indica um retorno em definitivo, mas alguns fatores foram determinantes para que eu saísse do torpor e me aventurasse por um texto deste Something in the Dirt (EUA, 2022, 116 min). Primeiro, meu agradecimento ao pessoal do Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, que não se esqueceu de mim e me disponibilizou o link do filme para que eu pudesse escrever sobre ele, mesmo depois de todo esse tempo; segundo, trata-se do novo filme da dupla de diretores Justin Benson e Aaron Moorhead, de quem sou fã de carteirinha número um; e para finalizar, o último fator é que Something in the Dirt é simplesmente fantástico.

Posso dizer que acompanho o trabalho de Benson e Moorhead desde a fase embrionária, com o eficiente thriller dramático Resolução Macabra (Resolution), lançado dez anos atrás, em 2012. Em 2014, veio aquele que até hoje é eleito por muitos o melhor filme dos diretores, Primavera (Spring), uma bem equilibrada mistura de Richard Linklater com H.P. Lovecraft que me transformou em fã da dupla. O Interminável (The Endless), lançado em 2017, era (até eu assistir a este Something in the Dirt), meu filme preferido de Benson e Moorhead, e também a produção que apontou o cinema da dupla em direção à um tipo de sci-fi mais cerebral, onde não há limites para a imaginação. Os diretores ganharam notoriedade, e passaram então a trabalhar com orçamentos mais parrudos, como no bom Sincrônico (2019), e séries de TV como Arquivo 81, A Quinta Dimensão e Loki. Neste 2022, a dupla encabeçou nada menos que a produção da série arrasa-quarteirão Moon Knight: Cavaleiro da Lua, para a Marvel/Disney Plus.

Justin Benson e Aaron Moorhead em SOMETHING IN THE DIRT (2022)

Something in the Dirt marca um bem-vindo retorno da dupla ao cinema de sci-fi cerebral, especialmente da forma que foi visto em seu O Interminável, também dirigido, escrito e interpretado por eles. Lá eles interpretavam irmãos às voltas com um culto que parece desafiar tempo e espaço, enquanto que aqui Benson interpreta Levi, um homem de passado traumático e sem otimismo para o futuro, que se muda temporariamente para um apartamento em Hollywood Hills, antes de de se mudar de Los Angeles em definitivo. Sem planos e nem mesmo móveis, ele começa uma amizade com seu vizinho, John (Moorhead), um divorciado cuja estante de livros é um mundo por si só. Tudo caminha normalmente por um tempo, até que eles testemunham um estranho e inexplicável fenômeno no apartamento de Levi. Os dois então decidem tentar documentar em vídeo o que está acontecendo, em troca de riqueza e fama. Afinal estamos em Hollywood, a terra onde sonhos podem se tornar realidade.

Uma espécie de híbrido inusitado entre Além da Imaginação e O Grande Lebowski, Something in the Dirt é mais um bem-sucedido exemplar de algo que transcende gêneros, especialidade de Benson e Moorhead. Através de ótimas performances, um arrepiante score musical, um roteiro esperto e afiado e algumas soluções visuais impressionantes, o filme conta uma história engraçada, honesta e completamente maluca sobre dois caras tentando ficar ricos enquanto mexem com forças com as quais eles provavelmente não deveriam se meter. Ao mesmo tempo, Something in the Dirt é também um pungente comentário sobre a natureza de ser um escritor de ficção-científica ou cineasta nos dias atuais.

Uma vez que os protagonistas começam a tentar capturar em vídeo os estranhos acontecimentos dentro do apê de Levi, o filme passa a ser apresentado como um documentário fake, quase como que um episódio perdido do antigo seriado Mistérios sem Solução, completo com imagens que ilustram os diálogos que dão uma ideia dos trágicos eventos que aguardavam os personagens, além de reconstituições de como tudo aconteceu — porém aqui tudo é reencenado pelos próprios objetos do documentário. Ou seja, Levi e John. Benson e Moorhead evitam a paródia ao replicar este tipo de seriado mencionado e as histórias que contam, e a dupla prefere utilizar uma linguagem visual mais em linha com o que o público busca hoje. Com tal linguagem eles contam uma história sobre a promessa de fama e a descoberta de uma verdade secreta muito maior do que se imagina. Tudo isso enquanto comunicam quem seus personagens realmente são.

Por exemplo, a maneira com que a câmera é colocada em cena nos conta sobre como os dois vizinhos vêem um ao outro; John pode filmar Levi fora de foco em tomadas amplas que colocam outra coisa em destaque, enquanto que Levi pode capturar John em close-ups que direcionam a atenção a seu monólogo mais recente sobre os mistérios da vida, por exemplo. Esta troca é valorizada pelo belo, incômodo e etéreo score a cargo de Jimmy LaValle, colaborador habitual da dupla, que emprega sintetizadores e até um jurássico teremim para criar um som que seja claramente reconhecível e ao mesmo tempo completamente alienígena, e que capture a paranóia que os personagens começam a sentir.

Quanto mais tempo eles passam documentando as estranhas e impossíveis ocorrências no apartamento, mais John e Levi embarcam em uma espiral de pesquisa ao oculto que envolve de tudo, desde magnetismo geométrico e numerologia até teorias sobre alienígenas antigos, a Irmandade dos Pitagoreanos, e a origem da própria cidade de Los Angeles. Benson e Moorhead são conhecidos por serem cineastas que realmente colocam a mão na massa, e isso fica bastante nítido aqui. A dupla co-dirige, co-escreve, co-edita e co-estrela no filme, e tudo transcorre sem solavancos de nenhuma natureza. A verdade é que a dupla já está pronta para qualquer tipo de projeto. São dois diretores plenamente já formados.

Justin Benson e Aaron Moorhead em SOMETHING IN THE DIRT (2022)

Apesar de ser ambientado em praticamente duas locações apenas — os apartamentos dos personagens — Something in the Dirt nunca chega nem perto de ser entediante, e as discussões entre os personagens nunca se tornam repetitivas. A longa amizade entre os atores também ajuda a tornar suas performances bastante críveis, e mesmo que seus personagens pouco conheçam um ao outro, há uma química instantânea e palpável entre eles. Isso também é facilitado uma vez que a relação entre ambos é bastante semelhante àquelas de personagens em filmes como O Grande Lebowski ou Segurando as Pontas; apenas dois caras relaxando de boas e fumando como se não houvesse amanhã, enquanto tentam resolver mistérios e ficarem ricos no processo. Mas por trás de suas facetas sem maiores preocupações, existe uma escuridão que é trazida à vida com nuance pelos dois atores. À medida em que a dupla se empenha mais na busca pela verdade, algumas revelações trazem à luz uma verdade que eles nunca desejariam ter visto.

Something in the Dirt é também uma carta de amor para a própria cidade de Los Angeles. Enquanto que muitos filmes se concentram nos piores aspectos da cidade e nas dificuldades para se vencer lá, o filme de Benson e Moorhead também enxerga as pequenas belezas de se viver na cidade dos Anjos, desde a visão de coiotes vagando pelas colinas de Hollywood, até seus belos cenários e seu clássico pôr-do-sol. Isso se estende às maneiras sutis com que seus residentes se comprometem em encontrar um lado positivo para uma situação desfavorável, como escutar os aviões voando sobre sua casa 24 horas por dia e interpretar isso como um coisa boa, já que você está a uma distância curta do aeroporto. “Você nem precisa de Uber”, um deles diz.

Apesar de sua natureza totalmente ficcional, Something in the Dirt cria uma interessante mitologia em torno de si mesmo, onde cada nova resposta abre caminho para mais teorias que se conectam e formam uma teia de conspirações, que resultam por exemplo, em uma teoria alternativa da história da humanidade que é fascinante de assistir, ao mesmo tempo que chega a ser hilariante de tão insana que é. E ainda assim, o filme também atua em caráter questionador, especialmente dos filmes que se apóiam pesadamente em diferentes mitologias, e que criam mundos fictícios que se conectam ao nosso. Something in the Dirt também resvala em uma interessante questão: se escritores e roteiristas de ficção-científica carregam alguma responsabilidade quando criam mundos de ficção que se tornam realidade nas mentes do público. Em tempos cada vez mais paranoicos, onde qualquer pessoa pode inventar uma resposta para qualquer pergunta imaginável usando uma thread no Reddit ou uma pesquisa no Google, o que antes poderia ser considerada apenas uma teoria inofensiva e lúdica sobre um filme, hoje pode tomar forma e crescer a ponto de criar seu próprio movimento. Ainda que o filme não ofereça respostas sobre o tema (e é melhor assim), ele com certeza levanta algumas ideias fascinantes envolvendo a maneira com que o público interpreta estas histórias, especialmente uma vez que oferece uma sólida mitologia com conexões reais com as origens de nosso mundo.

Something in the Dirt é mais um acerto que transcende gêneros a cargo de Justin Benson e Aaron Moorhead. Uma sci-fi altamente divertida e cerebral sobre dois vizinhos que encontram mistérios muito maiores do que eles próprios e que se encontram presos em sua própria obsessão pela verdade e pela fama. Something in the Dirt encapsula tudo o que faz de seus realizadores as vozes mais únicas e importantes da ficção-científica cinematográfica atual.

Avaliação: 3.5 de 5.

Something in the Dirt está rodando o circuito de festivais, e estreia nos cinemas americanos no dia 04 de novembro deste ano. Ainda não existe previsão de estreia nos cinemas brasileiros e nem título nacional.

O Trailer Oficial de SOMETHING IN THE DIRT (2022)

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