Crítica: Não Fale o Mal (Speak No Evil/Gæsterne) | 2022

Existem alguns filmes de terror que nos abalam profundamente, que nos fazem engolir o grito e cobrir os olhos, o coração saindo pela garganta. E existem alguns que se infiltram sorrateiramente em nossa psique e permanecem lá, estabelecendo uma sensação de pavor que demora a se dispersar. Não Fale o Mal (Speak No Evil/Gæsterne, DIN/HOL, 2022, 97 min.), novo filme do diretor dinamarquês Christian Tafdrup (do ótimo Pais, 2016), pode ser considerado um exemplar de ambas as vertentes; um primoroso trabalho de horror social com uma pegada sádica que você não esquecerá tão cedo.

Chega a ser difícil recomendar este filme para outras pessoas, afinal, por que eu indicaria esta experiência absolutamente desumana a alguém? De qualquer forma, irei fazê-lo. Porém, estejam avisados do nível de brutalidade do filme de Tafdrup; para aqueles dispostos a encarar a bronca, a recompensa é enorme. Não Fale o Mal é o filme de horror mais ardiloso e depravado em anos, que oferece um penetrante comentário sobre as formas que nos acomodamos aos outros, ao ponto da auto-subjugação.

NÃO FALE O MAL (SPEAK NO EVIL/GAESTERNE) | 2022

Agora que vocês já foram avisados, vamos prosseguir. Na superfície, Não Fale o Mal parece sua comédia dramática comum, que traz influências de outros cáusticos satíricos sociais como Ruben Östlund e Maren Ade, que brincam com ideias estabelecidas como a masculinidade e as boas maneiras de nossa sociedade civilizada. Louise (Sidsel Siem Koch), Bjørn (Morten Burian) e sua filha Agnes (Liva Forsberg), formam uma família dinamarquesa em férias na Toscana, onde eles conhecem os viajantes holandeses Patrick (Fedja van Huêt), Karin (Karina Smulders) e seu filho Abel (Marius Damslev), um garoto tímido que não fala.

Bjørn é logo atraído pela natureza direta e sociável de Patrick: interpretado com um quase animalístico senso de entusiasmo por van Huêt, ele não tem medo de dizer o que pensa, ou fazer o que quer, mesmo que incomode a terceiros. Eles se encontram pela primeira vez quando ele pede emprestado a Bjørn uma das cadeiras à beira da piscina. “Claro,” Bjørn responde, com um educado sorriso em seu rosto enquanto ele tira as coisas de Agnes da respectiva cadeira. Mais tarde o público constata que Patrick está na verdade testando Bjørn, vendo o quão facilmente ele pode manipulá-lo.

Existem incontáveis pequenos detalhes que Tafdrup usa para pintar um retrato de Bjørn, e todos parecem insignificantes até que a inacreditável conclusão do filme chega. Burian entrega uma performance memorável como o típico e ansioso homem comum: cortês ao extremo, ele ama sua esposa e sua filha profundamente, mas ao mesmo tempo anseia por livrar-se de sua vida burguesa. Ele não é exatamente o macho alpha que Patrick parece ser: Ele chora em um concerto na Itália, parte em uma caçada para encontrar o amado coelho de pelúcia de sua filha (e o encontra), e não sai da página dez da auto-biografia do ex-tenista André Agassi. Patrick, enquanto isso, faz um brinde em um jantar cheio de estranhos para se desculpar por ter feito muito barulho na noite anterior, come carne vermelha no almoço, e inspira Bjørn e Louise a se soltarem um pouco. Pois bem, as férias terminam, as duas famílias se despedem efusivamente, e vida que segue.

Algum tempo depois, Patrick e Karin enviam uma carta convidando os dinamarqueses a visitarem sua casa no interior da Holanda, e Bjørn adora a ideia. Entretanto, há uma certa desconfiança no olhar de Louise em relação a viagem. Desconfiança que prova-se mais astuta e pertinente do que eles poderiam imaginar.

A esperta utilização da música por parte de Tafdrup adiciona uma incômoda e enervante dissonância sônica mesmo nos momentos mais bem-intencionados de seu filme. Em certos momentos, a típica trilha-sonora de horror surge de surpresa em rompantes repentinos, indicando a existência de algum tipo de ameaça à espreita nos locais onde menos se espera. Na verdade, a ameaça é o tédio de Bjørn, e sua má vontade em enxergar as verdadeiras intenções do casal holandês. O espectador permanece com a forte sensação de que alguma coisa vai dar errado durante a viagem, mas por um longo tempo, nada de fato acontece. Sim, Patrick e Karin podem ser um pouco “desagradáveis”, mas ainda assim tudo soa normal, como geralmente acontece quando se fica por um tempo na casa de alguém.

Sidsel Siem Koch em NÃO FALE O MAL (SPEAK NO EVIL/GAESTERNE) | 2022

Patrick serve javali para o jantar sendo que Louise é vegetariana, Karin prepara não mais do que uma almofada para Agnes dormir no quarto de Abel, e após um jantar chique, o casal deixa uma enorme conta de restaurante para Bjørn e Louise pagar. Em um dado momento, Bjørn encontra Abel fora da casa no escuro, e o garoto abre a boca o suficiente para revelar um buraco. “Aglossia congênita,” Patrick diz, explicando que o menino nasceu sem a língua. Estas são apenas algumas das incontáveis inconveniências e bizarrices que a família visitante aceita, seja por educação ou embaraço. Sem falar nas várias outras transgressões mais sérias que Louise e Bjørn vivenciam individualmente e que não mencionam um ao outro.

No papel de Louise, Sidsel Siem Koch transmite com perfeição a estranheza de se sentir desconfortável na casa de outra pessoa, ao mesmo tempo em que tenta ser ouvida sem sucesso. Karina Smulders também está soberba como Karin, a esposa astuta que vê os dois lados da situação, falando em nome de seus hóspedes mas também claramente aceitando o comportamento errático do marido. Todos estes elementos culminam em uma bombástica surpresa para o casal dinamarquês, quando seus anfitriões decidem revelar a aterrorizante e definitiva verdade por trás de seu convite.

A conclusão do filme junta de maneira repentina e chocante todas as peças do quebra-cabeça para revelar uma medonha e grotesca imagem de pura maldade, que é impossível de esquecer (eu disse, estejam avisados). Trata-se do tipo de revelação que de alguma forma o espectador já sabia que viria, e que oferece um tipo de recompensa doentia para aqueles que aguardavam as respostas para as perguntas deixadas ao longo do filme. A visão dos seres humanos compartilhada por Tafdrup parece herdada do alemão Michael Haneke, uma vez que ele ilustra sem concessões a banalidade do mal. Mas ao invés de abrir a porta de sua casa para o mal, como quase sempre acontece nas histórias do tipo, a família no centro de Não Fale o Mal vai de bom grado ao encontro dele.

Avaliação: 4 de 5.

Não Fale o Mal fez sua estreia no Festival de Sundance deste ano, e será lançado no catálogo do canal Shudder e para download em breve.

O Trailer Oficial de NÃO FALE O MAL (SPEAK NO EVIL/GAESTERNE) | 2022

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