Se existe uma coisa sobre a qual eu gosto de me vangloriar, é de ter acompanhando o boom do entretenimento audiovisual sul-coreano desde seu início, no começo dos anos 2000. Hoje, o cinema e as séries sul-coreanas são talvez o que temos de melhor, tanto em matéria de entretenimento puro, como também no que diz respeito ao entretenimento como ferramenta de reflexão. Provas cabais disso são o sucesso dos doramas (séries em formato de novela produzidas por lá), o Oscar de Parasita e seu diretor, Bong Joon-ho em 2019, e mais recentemente, o mega fenômeno Round 6, que se tornou o assunto principal em qualquer conversa sobre fãs e não fãs de cinema e séries de TV. E depois de dominar a Netflix, os sul-coreanos chegam à AppleTV com esta instigante sci-fi Dr. Brain, primeira série sul-coreana do sistema de streaming da toda-poderosa Apple.
E Dr. Brain não decepciona os fãs das produções do país. Muito menos os entusiastas de uma boa ficção-científica. A série é idealizada e dirigida pelo ótimo Kim Jee-woon, de obras marcantes do cinema de seu país, como o estupendo thriller Eu Vi o Diabo (2010), e o horror com pitadas dramáticas Medo (2003), que aqui constrói uma série incrivelmente estranha, mas nunca no sentido pejorativo da palavra. Dr. Brain é criativa e esperta, e com certeza vai abocanhar boa parte dos assinantes Netflix que curtiram Round 6 e estão ávidos por mais diversão oriunda da Coréia do Sul.
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Dr. Brain tem ainda outro trunfo em seu protagonista, Lee Sun-kyun, um dos atores do momento na Coréia. Ele interpretou o patriarca da família rica em Parasita, e esteve também no ótimo dorama My Mister (disponível na Netflix), e aqui Sun-kyun interpreta o Dr. Sewon Koh, um cientista excêntrico e visionário que nos é apresentado como uma criança prodígio, cuja mãe veio a falecer em um terrível acidente de carro. A questão é que Sewon consegue lembrar de cada detalhe do acidente, até do rosto do motorista, e isso acontece porque há algo de diferente em seu cérebro, o que desperta nele uma fascinação sobre a forma que os seres humanos processam memórias e emoções.
Anos mais tarde, Sewon se tornou um frio médico com especialização no estudo do cérebro humano, cuja vida profissional rompe barreiras, mas cuja vida pessoal é simplesmente um desastre. Seu filho, Doyoon (Jeong Si-on), está desaparecido, dado como morto pela polícia, e sua esposa, Jaeyi (Lee You-young), está em coma. Para piorar de vez, Sewon descobre através de um misterioso detetive particular (Hee-soon Park), que sua esposa estava tendo um caso com um homem chamado Junki Lim (Kim Ju-hun), que foi assassinado, tornando Sewon o principal suspeito do crime.
Enquanto todo este caos se desenrola em sua vida, Sewon desenvolve uma nova e revolucionária ciência chamada “brain syncs”, que consiste basicamente em transferir memórias de uma pessoa para outra. Ou seja, poderia Sewon usar esta tecnologia para encontrar seu filho, salvar sua esposa e limpar seu nome? Talvez, mas ele logo descobre que esta “sincronia cerebral” traz efeitos colaterais, criando uma ruptura no espaço-tempo. Pode-se dizer então que Dr. Brain é uma mistura de Linha Mortal com A Origem, e ainda uma pitada de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, e mesmo que seus principais elementos já tenham sido vistos e explorados nos filmes citados acima, não há nada semelhante a Dr. Brain na TV há muito tempo.
Desde o início de sua carreira, o diretor Kim Jee-woon se mostrou um autor visionário, um profissional disposto a abraçar o estranho para criar algo inesquecível. Sua nova série é uma montanha-russa de diferentes tons que apesar de não conseguir alcançar a perfeição em seus episódios finais como prometia no início, ainda fornece muito para o espectador admirar. Trata-se de um insano híbrido de gêneros, criado para realmente mexer com nossas cabeças.
Baseada em um webtoon criado por Hong Jac-ga, Dr. Brain aplica seu surreal mix de estilos para criar uma história que é parte um drama familiar, parte alegoria sci-fi sobre os perigos da tecnologia, e parte filme de ação. E o melhor disso tudo é que Jee-won equilibra todos os elementos com sua habitual habilidade, conduzindo com inteligência a crescente carga emocional da jornada de Sewon à medida em que as revelações vão surgindo em seu caminho, sem esquecer de criar algumas sequências realmente tensas, incluindo um espetacular tiroteio no terceiro episódio. O ritmo dos seis episódios é frenético, ainda que os citados dois episódios finais exagerem na exposição e eliminem muito cedo o suspense. Dr. Brain é uma série tão bizarra que é compreensível que se torne menos interessante quando tem que explicar a si mesma, mas mesmo assim Jee-won nunca perde o controle do ritmo ou inteligência de seu produto.
Ajuda também o fato de Jee-won possuir um tremendo olho para o visual e continuidade. Outros diretores com certeza teriam perdido a mão com as alterações de tom e mudanças de gênero, mas as fortes composições do diretor mantêm a obra coerente e uniforme como um todo. Depois do estrondoso (e merecido) sucesso de Parasita, a esperança era de que com o tempo as pessoas descobrissem os outros belíssimos trabalhos de Bong Joon-ho. Agora, espero que o mesmo aconteça com esta Dr. Brain e Kim Jee-woon, outro grande expoente de um cinema (e TV) que merece ser cada vez mais descoberto.
Dr. Brain teve seu primeiro episódio disponibilizado no streaming da AppleTV no dia 04 de novembro, e seus próximos cinco episódios serão disponibilizados semanalmente toda quinta-feira.
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