Crítica: Um Herói (Ghahreman/A Hero) | 2021

Em uma era onde as redes sociais fazem os quinze minutos de fama parecer uma estimativa generosa, o que significa ser um verdadeiro herói? Se você sabe que fez a coisa certa, seria correto se desviar ligeiramente da verdade para convencer os outros de que você é genuíno? E o que você deveria fazer quando defender sua honra significaria inevitavelmente desonrar outra pessoa? O espetacular diretor iraniano Asghar Farhadi, um dos melhores cineastas da atualidade, está de volta com Um Herói (Ghahreman/A Hero, França/Irã, 2021, 127 min.), drama que mergulha de maneira envolvente nestas e outras questões morais, ancorado por uma excepcional performance central de Amir Jadidi no papel de um homem surpreendido por um gesto altruísta que se torna viral. E como todos nós sabemos, os vírus possuem uma péssima tendência para a mutação.

Um Herói prova também, mais uma vez, o imenso talento de Farhadi como diretor e roteirista de melodramas sofisticados que discutem questões éticas e emocionais. Seus filmes se tornam ainda mais ricos pelo fato de serem ambientados em seu país de origem, o Irã. Apesar do elenco estelar, que contava com nomes como Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín, o filme anterior de Farhadi, Todos Já Sabem, exibido em Cannes em 2018 e ambientado na Espanha, não trazia a mesma sutileza dramática ou inteligência moral de outros trabalhos do diretor, como Procurando Elly (2009), a obra-prima A Separação (2011) e O Apartamento (2016), todos eles ambientados no Irã. Ainda assim, o cinema de Farhadi possui uma linguagem universal. Suas tramas poderiam ser refilmadas em qualquer lugar do mundo, especialmente este Um Herói, que poderia muito bem ser refilmado pelo cinema americano. Mas filmes são mais que apenas tramas, e Um Herói ressoa mais forte com o espectador pela forma com que expõe as forças coercivas que esculpem a sociedade iraniana moderna.

Sahir Goldoust em UM HERÓI (A HERO/GHAHREMAN) | 2021

Há uma sensação de fracasso pairando em torno do personagem de Jadidi, Rahim, uma impressão de desespero que ele tenta disfarçar sorrindo por trás da adversidade. Seu sorriso, inclusive, é o barômetro emocional da produção: nas raras ocasiões em que ele não aparece, o efeito é devastador. Rahim está em uma “saidinha” de dois dias da prisão, após ser denunciado por Bahram (Mohsen Tanabandeh), o fiador de um empréstimo obtido através de um agiota o qual Rahim nunca conseguiu pagar. O interesse romântico do protagonista, Farkhondeh (Sahir Goldoust), trabalha em um centro de terapia fonoaudióloga frequentado pelo filho de Rahim, que sofre de gagueira; ainda que eles não sejam casados, eles planejam fazê-lo, assim que Rahim sair da cadeia. Farkhondeh pode ser capaz até de conseguir liberar seu amado da prisão sozinha, já que a sorte parece ter batido em sua porta na forma de uma bolsa encontrada em um ponto de ônibus, contendo 17 moedas de ouro que, uma vez vendidas, seriam suficientes para levantar o dinheiro necessário para pagar a dívida de Rahim.

Porém, Rahim ouve a voz de sua consciência, e começa a espalhar anúncios sobre a bolsa perdida, até que o dono da referida eventualmente aparece. Este ato de “heroísmo” o coloca nos noticiários e o transformam em uma celebridade das redes sociais, especialmente quando as autoridades prisionais percebem que podem utilizar seu ato altruísta não apenas para impor normas morais, mas também elevar suas próprias avaliações de crédito, que foram rebaixadas recentemente devido a um suicídio na prisão. É neste ponto que Um Herói começa, lenta e inexoravelmente, a bagunçar de vez a vida de Rahim, o empurrando gradativamente para uma situação mais desesperada e perigosa do que quando o vimos pela primeira vez, saindo da prisão. A questão que fica é… Quem exatamente está orquestrando tudo isso?

Seria Bahram, que recusa teimosamente até o pagamento parcial da dívida (ainda que depois fique claro que ele tem suas razões)? Seria o diretor da prisão e seu braço-direito, que em benefício próprio jogam Rahim no meio do turbilhão da mídia? Seria o pessoal da televisão que diz a ele para não mencionar o agiota porque não soa bem na TV iraniana? Seria a pequena mentira que Rahim conta para acobertar seu relacionamento clandestino com Farkhondeh? Ou seria a instituição de caridade que decide ajudar Rahim a levantar o dinheiro antes de se virar contra ele quando as coisas começam a azedar? Através de todos estes compromissos morais supostamente inocentes que os personagens fazem, quem paga são os verdadeiros inocentes; as crianças, especialmente o filho de Rahim, cuja gagueira debilitante é, em dado momento, explorada por um canal do YouTube.

Um Herói é uma experiência cinematográfica dura, que não possui nem mesmo score musical; seu design de som é dominado por ruídos do trânsito, fragmentos de música, o barulho dos videogames das crianças. Visualmente, Farhadi também não poupa seu público, o mergulhando em um ambiente de alta pressão, onde a intimidade pode ocorrer somente dentro de um carro, onde uma prisão é apenas mais uma caixa onde pessoas são forçadas a viver. Em Um Herói, assim como no mundo real que Farhadi sempre explora tão bem, ninguém é perfeito, ninguém é totalmente o vilão, e isso vale para o próprio Rahim. Em um mundo onde não existe preto e branco, resta a nós, o público, tentar identificar todos os tons de cinza.

Avaliação: 3.5 de 5.

Um Herói é o filme selecionado pelo Irã para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2022, foi exibido no Festival de Cannes deste ano e também na 45a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e será lançado no catálogo da Amazon Prime no dia 21 de Janeiro de 2022. O filme ainda não tem data de lançamento nos cinemas brasileiros.

O Trailer de UM HERÓI (A HERO/GHAHREMAN) | 2021

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